A concepção de mundo analítica, mecanicista e positivista constitui a fundamentação da civilização humana. A Revolução Industrial e os atuais modelos de produção e de consumo encontram nessa concepção as suas raízes. Impressionantes conquistas foram realizadas, o homem chegou à Lua e prospecta com suas sondas espaciais além das fronteiras da heliosfera (sistema solar), para adentrar pela primeira vez no espaço interestelar. Não há como não nos embevecermos com as belíssimas imagens do espaço que nos chegam. Verdadeiras obras de arte revelando-nos impressionantes espetáculos de luz, formas e cores e poderosas demonstrações de forças e energias inconcebíveis.

Mas perguntamos: Será mesmo essa a nossa última e mais distante fronteira? Se reduzidos, dissecados, separados e restritos aos nossos cinco sentidos, realizamos tanto, o que mais poderemos esperar?

Apesar das impressionantes conquistas já realizadas, convivemos com a opulência em meio à aberração da miséria absoluta

A visão de mundo anterior separou mente e corpo. Separou humanidade e biosfera. Passamos a tratar a natureza como propriedade e algo a ser dominado e explorado. Se muito realizamos, convivemos com a aberração da miséria em meio à opulência. Governos, instituições, modelo produtivo e de consumo refletem essa visão fragmentada cujo avanço esbarra agora nos limites físicos do planeta e coloca em risco a sua capacidade de sustentar a continuidade dos seus serviços que são vitais à sobrevivência da espécie cujo número de indivíduos ainda levará algumas décadas para estabilizar.

Apesar da elevação do nível de conforto e da massificação da educação, convivemos com a triste realidade de bilhões de seres humanos em miséria absoluta, distantes dos serviços de educação e saúde, mortes de crianças pela fome e de adultos pela disseminação de doenças contagiosas como o HIV e de outras que ressurgem décadas após terem sido debeladas.

Esterilização de inimagináveis volumes de recursos no complexo industrial militar e na ciranda financeira

Enquanto isso, trilhões de dólares são esterilizados no complexo industrial militar e na ciranda financeira. O modelo de produção extrativista produz quantidades inimagináveis de resíduos e esgota a capacidade de restauração dos principais serviços oferecidos pela natureza cujo valor não é computado nos nossos sistemas contábeis.

Governos apropriados por grupos criam e mantêm privilégios em detrimento de perseguirem o bem-estar geral, deixando, dessa forma, de responder à responsabilidade que lhe foi imputada por todos. Continuamos erguendo muros em um mundo cada vez menor.

A foto da Terra tirada pela Voyager quando ela se aproximava de Saturno, mostrando o distante pontinho azul que é o nosso lar, faz saltar à vista e às nossas consciências os absurdos que praticamos. A reflexão quase poética feita por Carl Sagan durante uma palestra pública na Universidade Cornell em 1994 é inolvidável:

Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada “superestrela”, cada “líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali – em um grão de pó suspenso num raio de sol.

A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios.

As nossas posturas, a nossa suposta auto importância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios.

A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto.

Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o “pálido ponto azul”, o único lar que conhecemos até hoje.

 – Carl Sagan[1]

   Atingimos a fronteira da sustentabilidade e também dos absurdos da moralidade. 

A nova visão de mundo demonstra a unicidade do universo e as dinâmicas evolutivas na construção de redes (a teia da vida), nas quais prepondera a cooperação para a coevolução, que, por sua vez, demonstra a primazia do processo evolutivo centrada na vida e no surgimento de uma consciência que aponta para um novo patamar evolutivo, o qual, ainda sem prescindir do suporte orgânico do planeta, dele começa a se distanciar pela sutileza das suas características. Chegaremos a constituir, a partir da camada pensante, o que Teilhard de Chardin denomina de noosfera? O que precisamos fazer para que o impulso da noogênese não se perca? Quais redirecionamentos em termos de governança e modelos de produção e de consumo precisarão ser realizados? Quais as regenerações imperiosas que não poderão mais ser adiadas?

Dispomos do conhecimento e recursos necessários ao enfrentamento dos desafios com os quais somos defrontados

A reconversão dos ativos improdutivos e a utilização da tecnologia e da capacidade de gestão são os recursos de que dispomos para superar esses desafios e aproveitar as imensas oportunidades que se nos descortinam. Enfrentaremos esses desafios utilizando a nossa razão ou constrangidos por processos de dor e sofrimentos impingidos por Gaia para a restauração do seu equilíbrio? 

Teremos tempo ainda para que a nova visão de mundo fundamente a construção de um novo modo de viver? Um novo modo pautado no sentimento da humildade, compaixão e inclusão? Um novo modo que derrube os muros e construa pontes físicas, emocionais e espirituais em prol da paz das nossas consciências, do bem-estar de cada ser humano e do nosso planeta?

A mais fantástica jornada que o ser humano está por empreender

Para isso, precisaremos realizar a mais fantástica jornada que o ser humano está para empreender. Desbravar a mais resistente fronteira com a qual nos defrontamos em toda a nossa história. A fronteira para o interior de nós mesmos, para que possamos, finalmente, lançarmos mão das nossas supremas potencialidades hoje submersas nas camadas grosseiras do ego, orgulho e prepotência. Mas isso é tema para o próximo artigo.


[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1lido_Ponto_Azul (consultado em 11/03/2019).

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